quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

O que é ideologia?









Quando notamos movimentos sociais e de grupos, institucionais ou não, aprendemos rapidamente isso: a ideologia e a propaganda são parentes não distantes, e a semelhança familiar é justamente esta: ambas querem aparecer.“Qual a ideologia que está por trás disso?” – eis aí uma pergunta estranha, mas que várias pessoas formulam, descuidadamente. Não há ideologia “por trás”. Caso exista algo “por trás” de um texto ou de  um vídeo ou de uma peça de teatro ou de uma bula de remédio ou de uma legislação, pode acreditar, você não está diante da ideologia.  Por uma razão simples: ideologia é algo que não vem “por trás”, ideologia é o que vem em primeiro plano, é o que está “na frente”.


primeira característica de um conjunto de idéias que se pode chamar de ideologia é a de vir antes que qualquer outra coisa. Ela pertence ao que se quer mostrar e, de preferência, em primeiro plano. Ora, mas há outras duas características da ideologia.

segunda característica é a busca de universalidade a qualquer preço. Um conjunto de idéias que é bem particular, que não tem grande força lógica para se tornar universal e, no entanto, busca se tornar universal e quer ser uma verdade independente de todos e uma verdade para todos, já está funcionando como ideologia. É próprio de um conjunto de idéias que se quer transformar em ideologia procurar se colocar de modo abstrato, para ganhar universalidade.
“O amor é a única lei” é uma idéia cristã, contra a idéia pagã da “lei do olho por olho e dente por dente”. Todavia, quando já ninguém sabe o que é que se quer dizer por amor, dado sua transformação em palavra abstrata, então a frase pode ser endossada por todos. Todo mundo diz que a coisa mais importante do mundo é “ter amor”. Assim, o próprio cristianismo, se está ligado a isso, se comporta como ideologia.
terceira característica da ideologia é que ela quer antes mostrar a verdade “que se tem de seguir” do que um conjunto de enunciados que, possa levar à reflexão a respeito de outros conjuntos de enunciados e assim por diante. Ela, a ideologia, aceita pouco aquilo que Robert Brandom, louvado por Rorty, chamou de “o jogo de dar e pedir razões”. Nesse sentido, é próprio da ideologia o engodo, a ilusão ou o erro.
Nesse caso, não falamos de erro psicológico (da percepção ou do raciocínio). Trata-se de engano, certamente, mas como uma feição bem especial, a saber, nem sempre a ilusão ideológica se desfaz uma vez que seu mecanismo de engodo é revelado. Trata-se aqui do contrário do erro perceptivo ou de um raciocínio equivocado, que pode ser corrigido, e geralmente o é, quando vemos que em que lugar a frase endossada está dando problemas O engodo ideológico permanece, mesmo quando denunciado. A realidade que vemos ideologicamente não muda, mesmo que o que tomamos por realidade esteja, então, denunciado como produto ideológico.
Encontramos boa parte dos professores, jornalistas, médicos etc. totalmente imersos em ideologias. Eles acreditam que só os não escolarizados vivem sob o domínio do senso comum, e que eles próprios funcionam segundo o aparato dado pelo pensamento crítico, livres da ideologia. Todavia, talvez isso que dizem já seja, então, uma ideologia. Afinal, é o que vem na frente – é a primeira coisa que dizem, quando querem se distinguir dos outros. Caso seja assim, então imaginam estarem endossando, de modo esperto, filosofias. Podem não estar. E nesse caso específico, talvez não estejam mesmo. Por não se preocuparem em fazer distinções, e então ver em que poderiam ser ou não diferentes dos não muito escolarizados (“o povo”), eles próprios podem estar apenas no campo do senso comum.
Aliás, diga-se de passagem, esse tipo de intelectual acaba mesmo se envolvendo em uma ideologia específica, que é a que endossa a idéia de que o senso comum é o “pensamento ingênuo”, e que o “homem do povo” ou “o povão” é sempre enganado, ludibriado exatamente por se manter na ingenuidade.


É claro que a proteção contra a ideologia é o uso da razão. Todavia, temos de nos lembrar que o uso da razão, a racionalização de tudo, pode também ser ideológica.